terça-feira


Quando cheguei a pensar em desistir de sonhar, recebi isto:

" Vêm dias em que nos sentimos frágeis brinquedos de forças que não compreendemos.


Alguém nos fere com um gesto, uma palavra. Uma peça qualquer deste confuso universo urbano que nos aprisiona cessa de funcionar. Um velho projeto parece de repente irrealizável. Uma pessoa que amamos parte sem aviso. Ou então, mais simplesmente, um vago intruso desalento vem nos fazer companhia e nos põe de mal com o mundo.

Não há receitas prontas para enfrentar nada disso. Os poetas ultra-românticos costumavam compor belos versos em homenagem à tristeza. Mais prática, a humanidade de agora deita-se no divã dos analistas e compõe longos monólogos de solidão e nudez.

Quanto a mim, além dos versos, tenho como analista este inquieto coração que no silêncio da noite me fala coisas em código.

─ Por que não vês as estrelas? – pergunta-me o coração – Por que não contemplas sua lenta caligrafia de luz e seu tímido pulsar e seus mistérios, que fazem ínfimos todos os pesares?

─ Pouco sei de estrelas – respondo. ─ Já não as vejo, ocultas que andam pelo clarão artificial desta cidade, perdidas que estão nesta névoa letal que respiramos.

─ Por que não te exilas da cidade? – pergunta-me o coração. – Por que não buscas a árvore que plantaste, o pássaro que viste pousar em seus ramos aquela manhã e que desafiou o sol com um canto que desconhecias?

─ Não posso deixar a cidade – respondo. ─ Sou parceiro de um estranho jogo de sobrevivência. Deram-me as cartas, devo armar as seqüências à espera do rei de ouros.

─ Por que não desprezas o rei, por que não rejeitas o ouro? – pergunta-me o coração. ─ Por que não voltas despojado àquela praia onde aprendeste o exercício da liberdade?

─ Por que distante ficou aquela praia e já duvido que ainda exista aquele mar. E já não creio que partam os saveiros tocados pela brisa da armação e com eles os navegantes embriagados da incerteza móvel de seus destinos.

─ E por que não soltas as amarras de teu destino? – pergunta-me o coração. ─ Por que não largas teu leme pelo curso vário de teus sonhos.?

─ Não há barcos, não há praias, não há estrelas – respondo ─ Perdi-os em algum lugar do passado mais-que-perfeito.

─ Mas ainda há sonhos – diz-me então o coração. ─ E em cada sonho há um barco, uma praia, uma estrela.

Em cada sonho há um pássaro que desafia o sol com uma canção desconhecida. E não há ouro que valha essa canção e não há rei que a cale. Pois que está nos livros que somos feitos de argila e sonho. E que lentamente a sucessão dos anos submete a argila como o vento faz curvar-se a árvore que plantaste. Mas força alguma pode dobrar o sonho, Gabi."

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.